‘INTERSTELLAR’ E A DITADURA DOS ECONOMISTAS: O DIA EM QUE UM LIBERTÁRIO ENSINOU QUE É POSSÍVEL SER CONTRA A PEC 55

Este artigo é inspirado em outro artigo, intitulado ‘Interstellar – liberdade e as fraquezas do progressismo’, escrito por Samuel R. Staley[1], e disponível aqui: http://blog.independent.org/2014/11/28/interstellar-liberty-and-the-foibles-of progressivism/[2].

O artigo traz a estória contada pelo filme Interstellar, de Christopher Nolan, em que a raça humana procura outro planeta para sobreviver, e uma equipe de especialistas sobreviventes da NASA é a única esperança de salvar a espécie. Por todo o enredo, os personagens se encontram sob um dilema: 1 – a possibilidade de enviar todos os seres humanos da Terra aos planetas colonizáveis enquanto há tempo; 2 – a criação de uma nova população no novo planeta por meio de manipulação genética. O fim da história mostra que a primeira opção nunca foi seriamente considerada pelo chefe da equipe (Dr. Crane), que manipula a todos para escolherem a opção B.

Qual a crítica que Staley retira do filme? A elevação do pensamento político progressista como única lógica da gestão política. A ideia central do progressismo técnico-científico é a de que “especialistas deveriam ser colocados no comando das políticas públicas, utilizando uma ‘gestão científica’ e uma análise política ‘baseada nas evidências’ para determinar e por em prática políticas sociais”. Segundo Staley, Interstellar “critica severamente o comando de especialistas em favor da criatividade individual”.

O que mais me intrigou: o artigo foi traduzido ao português e publicado por um portal libertário de notícias, o ‘Libertarianismo’. Isso deve(ria) chocar alguns brasileiros que se afirmam libertários[3].

É que se Staley viesse ao Brasil e observasse o contexto em torno da proposição da PEC 55 – a PEC do ‘fim-do-mundo’, ou PEC dos gastos, responsável pelo congelamento das políticas públicas sociais por 20 anos – certamente aplicaria a mesma crítica de Interstellar aos que apoiam a tal Emenda Constitucional – e isto surpreenderia muitos que se dizem ‘libertários’, (neo)liberais, enfim…

Isso porque a PEC 55 representa um sério retrocesso em matéria de normatividade da Constituição, que se ampara sob a lógica dos especialistas em economia.

Sejamos justos, de certos especialistas em economia, cujo amor pela evidência leva a acreditarem serem os portadores da verdade e do progresso. Karl Popper (outro libertário, vejam só…), em A sociedade aberta e seus inimigos, compara o pensamento técnico-progressista à metáfora do Rei Filósofo de Platão[4], para quem filósofo não seria aquele que busca a sabedoria, mas o que a possui, e impõe esse conhecimento às opções políticas da sociedade[5].

Hoje, a sensação é a de que temos novos ‘reis-filósofos’. Só lhes dando ouvidos a sociedade pode(ria) prosperar. E a Constituição? Que se adeque aos seus dogmas! Assim como em Insterstellar, não há espaço para a criatividade humana.

Estamos diante de um fenômeno bastante presente no Direito, o da sua predação. Assim como a mídia, a política e a moral, a economia é uma predadora natural do Direito. E a PEC 55 nos permitiu observar como isso ocorre em Bruzundangas. Quem defende a PEC do fim-do-mundo só é capaz de raciocinar de uma perspectiva: a lógica econômico-progressista, muito creditada à Escola Austríaca (Mises) e à Escola de Chicago (Friedman). Para eles, só há uma opção para salvar a Terra – cortar todos os gastos com políticas públicas e privilegiar o poder econômico privado.

Ignora-se a o fundamento das democracias constitucionais – a definição e tutela de um núcleo duro de direitos e liberdades individuais, sociais, difusos e coletivos -; o caráter histórico e irrenunciável dos direitos fundamentais elencados na CF; a posição de autonomia do direito perante a política conferida a partir do pós-Segunda Guerra; enfim, todas as conquistas das últimas décadas em direitos humanos/fundamentais vão por água abaixo conforme a lógica neoliberal destes sábios.

O mais importante, esquece-se que numa sociedade aberta, as escolhas políticas se desenvolvem por meio de formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana, especialmente mediante a realização dos Direitos Fundamentais, e não sob sua supressão mediante uma lógica[6].

Talvez seja a hora de lembrar que é tarefa dos nossos especialistas (de qualquer área) serem criativos o suficiente para concretizar as promessas da modernidade ainda não cumpridas aqui no Brasil e hoje estampadas na Constituição Federal, antes de abrirmos mão de décadas de luta porque alguns “padres do séc. XXI” aconselharam…

 

[1] Diretor administrativo do DeVoe L. Moore Center na Faculdade de Ciências Sociais na Universidade Estadual da Flórida

[2] A tradução é encontrada neste endereço: http://www.libertarianismo.org/index.php/artigos/interstellar-liberdade-fraquezas-progressismo/.

[3] Veja bem: me refiro aos liber(o)tários do senso comum brasileiro, que não tem ideia do que é realmente liberalismo, neoliberalismo, liberalismo neoclássico, libertarianismo e etc. Adotam os conceitos destas correntes de pensamento acriticamente por conta da fobia hereditária que o brasileiro tem da esquerda. Para um aprofundamento do tema: https://libertarianismoedarwinismo.wordpress.com/2013/05/18/liberais-neoclassicos-sao-libertarios/; http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1428.

[4] “A menos que em suas cidades os filósofos sejam investidos do poder de reis, ou que aqueles chamados reis e oligarcas se tornem genuínos e plenamente qualificados filósofos; e a menos que estes dois poderes, o político e o filosófico, se fundam, a menos que isso aconteça, meu caro Glaucon, não poderá haver repouso; e o mal não cessará de agitar as cidades, nem, creio eu, a raça dos homens” (ROSA, Rivadávia. Resumo de A Sociedade Aberta e seus Inimigos (The Open Society and its Enemies), de Sir Karl Raimund Popper – Viena, 28 de Julho de 1902 — Londres, 17 de Setembro de 1994 p. 06).

[5] ROSA, Rivadávia. Resumo de A Sociedade Aberta e seus Inimigos (The Open Society and its Enemies), de Sir Karl Raimund Popper – Viena, 28 de Julho de 1902 — Londres, 17 de Setembro de 1994, p. 07.

[6] HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre/RS: Sergio Antonio Fabris Editor. 2002.

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